Tarde de Novembro : crônica
Tarde de Novembro.
Indiferentes
ao calor da tarde modorrenta elas se
agitavam, inventando brincadeiras.
Ora
subiam as escadas de cimento em busca da piscina escavada no platô do morro,
ora desciam aos saltos a mesma escadaria, zombando do perigo de queda iminente,
carregando nos braços a imensa bola de praia já meio murcha pelos repetidos
chutes desferidos sem dó.
Lembro-me
quando era eu a subir aquelas mesmas escadas aos saltos, para dividir a casinha
de bonecas que existia naquele mesmo platô com minha irmã caçula, cinco anos
mais nova.
Dentro
daquela casa, construída caprichosamente em alvenaria e telhado de barro, as paredes
eram um pouco mais altas que eu à epoca. Não posso precisar, mas imagino que
hoje seria preciso curvar meus parcos 1,62 metros para adentrar pela portinhola
azul.
Ah! Lembro ainda de que tinham duas janelas e um
telhado com algumas telhas transparentes a iluminar a casa por dentro. Uma mesa
comprida, azul como as janelas, e algumas cadeiras. E, claro, prateleiras para
as bonecas.
Há exatos quarenta anos, quando meus pais
comprararm aquele imóvel numa cidade do interior do Rio de janeiro, ainda não
havia luz elétrica na região, e as noites eram iluminadas por um lampião a gás.
Eu
tinha cinco anos quando a minúscula casa no meio do terreno e que não era muito
maior que a de brinquedo, foi ampliada até transformar-s em uma grande sede com
três ambientes, um quarto para mim e minha irmã, outro para a mais velha, outro
para receber hóspedes. Uma ampla cozinha
e duas salas, uma para a televisão e outra para a mesa de jantar.
É
claro que todas essas obras não ocorreram do dia para noite. Eu podia ver as
transformações que reconfiguravam tanto o terreno quanto a Casa Grande do Sítio
Comandante, pelo recorte da paisagem que mostrava a janela da casinha de
brinquedo, construída com o que sobrava da obra da Casa Principal, também
pintada de branco com janelas azuis.
A
Casa de Bonecas havia sido meu presente de aniversário de cinco anos. Mas as
crianças tem essa mania de querer crescer, e crescem rápido- mal podemos
acompanhá-las.
Chegou o dia que não mais pude atravessar a
porta azul sem me curvar e como era impossível beber uma poção mágica que me
fizesse diminuir de tamanho tal como ocorreu à menina Alice de Lewis Carroll,
precisei deixar meu Mundo de Maravilhas infantis para estrear a adolescência.
A essa
altura, a energia elétrica já chegara, aposentando de vez o Lampião a gás e a
Casinha de Bonecas, demolida para dar lugar à piscina.
Agora
o local era tomado por um vozerio desafinado implorando por salgadinhos e
refrigerantes, seguidos por gritos de que é proibido entrar na piscina com a
mão suja.
O resultado previsível era sempre uma água
esverdeada como a cor dos meus olhos. Eu crescia, espichando como o pé de
carambola. O pé de manga. Era cada manga boa de comer... Espada e Carlotinha. Coração de Boi enorme, graúda, suculenta,
meio avermelhada na casca e amarela por dentro. O sumo adocicado escorria pelo
rosto e pescoço até ser enxuto pela manga da blusa num gesto imprudente.
Minha
mãe servia suco de manga e de caju à beira da piscina nos feriados e férias
escolares.
A distância
ficou ainda maior quando precisei mudar de município para estudar.
A faculdade espaçou as visitas ao sítio. Em
especial quando veio o casamento, e as barrigas agigantaram-se uma, duas, três
vezes até que cinco anos depois foi a vez de minha irmã mais nova trazer para a
Casa Grande uma menina irriquieta como ela fora um dia, para brincar nas férias
e feriados escolares com minha filha caçula.
E
agora eis que estão elas a chutar a bola de praia que resvalou a esmo até
encontrar o enfeite do vaso. Com o impacto, o vaso de plantas tombou derrubando
a terra do interior e a plaquinha de madeira onde um sapinho pintado num lago
azul segurava outra plaquinha onde se lia que na casa de Vó tudo pode.
Minha
mãe desce da varanda, short azul com flores, blusa branca e um Hibiscus cor de
creme a enfeitar o cabelo. Mais de setenta anos a separar as gerações. Não é
incrivel o entendimento imediato que só é conferido às extremidades da vida?
Quem
foi que quebrou o vaso?
Eu
e minha irmã mandamos nossas filhas para o quarto a pensar na bobagem que
fizeram e dali a pouco estavam as duas a confabular traquinagens usando o
lençol da cama sobre duas cadeiras, improvisando uma tenda. As duas, a
conversar e a brincar de bonecas.
Minha
mãe chega com suco de manga na bandeja servido nos copos. Biscoitos e perdão.
Na casa de Vó tudo pode. O perdão é doce como goiabada em calda.
Perdão
concedido, arrumamos as crianças esticar um pouco mais aquele dia, finalzinho
de feriado. Comer pão de queijo na padaria.
No estabelecimento, uma mesa comprida e seis
cadeiras. Coloquei no lugar vago as bolsas para disfarçar Não que fosse preciso
realmente, já que nenhuma ausência é eterna. Meu pai, agora avô, de onde
estiver estará satisfeito, a olhar a família reunida num final de uma tarde quente
de Novembro, a aproveitar os últimos raios do por do sol.
Michelle Louise Paranhos
Michelle Louise Paranhos
Olá Michelle, que texto mais lindo! Parabéns pela sensibilidade com as palavras, isso é magnifico. Seu texto me remeteu ao período da infancia e isso me rende uma saudade gostosinha.
ResponderExcluirAchei um texto pesado e cheio de sentimentos, enquanto lia, meu coração ficava apertadinho. Adorei o final, super lindo.
ResponderExcluirParabéns pela sensibilidade com as palavras. <3
Muito lindo e faz imaginar a cena 🤔
ResponderExcluirParabéns pela escrita. O final é bem tocante e gosto de narrativas assim.
ResponderExcluirBeijos,
www.psamoleitura.com
Oi, Michelle !
ResponderExcluirAdorei o texto, uma mensagem bem interessante.
Parabéns!
Oi, Michelle! Que texto lindo!
ResponderExcluirAdorei ler ele, parabéns pelas palavras e sensibilidade em colocar elas no papel!